
Filha de pai francês e mãe brasileira, Niède nasceu em Jaú (SP), em 1933. Formada em História pela Universidade de São Paulo (USP), lecionou na França e, ao retornar ao Brasil, em 1970, manteve contato com as pinturas rupestres de São Raimundo Nonato, desenhos de 30 mil anos. Três anos depois, ela localizou outros achados após suas escavações. De volta à França, concluiu doutorado em pré-história em 1975, na Universidade de Paris.
Em entrevista à TV Clube, de Teresina, em agosto de 2022, a arqueóloga descreveu que, ao ver o patrimônio pela primeira vez, compreendeu “a importância de proteger tudo. Então, eu consegui criar a fundação e lutar para manter então o parque nacional”, diz, referindo-se à Fundação do Museu do Homem Americano (Fundham). Paralelamente, sua teoria afirmava que a chegada do homem à América teria ocorrido muito antes do que se projetava, superando a perspectiva de 13 mil anos do povoamento das Américas pelo Estreito de Bering. Criado em 1979, um ano antes da Fundham, o Parque Nacional reúne mais de 800 sítios pré-históricos, incluindo pinturas, ferramentas e outros vestígios humanos. No ano passado, Niède se tornou Doutora Honoris Causa da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Engenharia sustentável
Para o presidente da Federação Brasileira de Geólogos (Febrageo), geol. Caiubi Kuhn, "a atuação da Niède Guidon teve um papel fundamental na ciência brasileira. Em específico, em reconhecer ali o registro da presença humana naquela região, em datações que chegam a alcançar 50 mil anos, o que colocou em xeque a teoria da imigração do homem pelo Estreito de Behring nas idades que eram propostas anteriormente, que era por volta de 18 a 19 mil anos, e que teriam chegado no Brasil há 12 mil anos atrás".
Na entrevista a seguir, Caiubi comenta também a importância da relação da Arqueologia com a Engenharia e a Geologia, que se faz mais presente na Arqueologia de Contrato ou Empresarial, em torno de facilitar os entraves burocráticos e financeiros às pesquisas. As normas são estabelecidas pela Resolução do Conama, prevendo responsabilidades e diretrizes para uso e implementação da Política Nacional do Meio Ambiente, cumprindo o Relatório de Impacto no Patrimônio Cultural, além do Relatório de Impacto Ambiental. Há, portanto, a preocupação em preservar os achados, contribuindo para a preservação da memória de povos do passado, ao mesmo tempo em que se promove o desenvolvimento. Foi assim na construção da hidroelétrica de Itaipu, ainda antes da regulamentação, e em outras grandes obras do país.
Confea - Desde a Resolução 1 do Conama, o país tem uma regulamentação para a atuação da Arqueologia, que deu origem à Arqueologia de Contrato, prevendo responsabilidades como o Relatório de Impacto no Patrimônio Cultural. O país necessita dessa convivência entre o desenvolvimento e a sua memória histórica e pré-histórica?
Caiubi Kuhn - O desenvolvimento da Arqueologia de Contrato possibilitou uma série de descobertas de sítios arqueológicos no Brasil, hoje chegando a mais de 28 mil sítios registrados no IPHAN. E esses trabalhos que são realizados em grandes empreendimentos de Engenharia possibilitam que se tenha um resgate de parte da história e da pré-história do nosso país, então acaba cumprindo um papel fundamental para o registro do que foi o passado dos povos que habitaram o Brasil, assim de como decorreu o processo de colonização do país.
Confea - Como se dá a relação da Geologia, da Engenharia e da Arqueologia nesse processo de construção de grandes obras, como as hidroelétricas?
Caiubi Kuhn - Embora a Geologia seja uma área diferente da Arqueologia, ela possui uma conexão em vários aspectos, como, por exemplo, quando se pensa em Pedra Lascada, essas ferramentas são feitas com materiais geológicos, com diferentes tipos de rochas, minerais, assim como o próprio processo de registro desses sítios arqueológicos, de deposição de materiais desses sítios arqueológicos, eles seguem uma lógica de deposição de camadas, que é algo comum também para a Geologia. Então, existem conexões entre Geologia e Arqueologia que estão vinculadas principalmente à história recente do nosso planeta, o que, neste caso, estamos falando de alguns milhares de anos. Lembrando que até mesmo alguns animais extintos, como preguiças e tatus gigantes, chegaram a conviver com o homem pré-histórico. E aí, nesse caso, tem essa conexão com uma parte da Geologia que é a Paleontologia, com esses registros do homem pré-histórico que são contados pela Arqueologia. Então, as duas áreas possuem uma conexão forte em vários aspectos. Em relação às obras de Engenharia, a Arqueologia acaba atuando como uma das áreas do processo de licenciamento ambiental e, às vezes, dentro do próprio desenvolvimento da obra, também, no monitoramento dessas áreas em locais onde há uma relevância maior dentro do ponto de vista arqueológico. Então, quando você encontra materiais relevantes, além das etapas iniciais, às vezes é necessário ter um monitoramento posterior, inclusive para garantir que esses elementos que contam a história dos povos que habitaram o nosso país sejam resgatados e devidamente registrados e que depois, possibilite, em museus e outros espaços, que a população tenha acesso a essa história.
Confea - A Arqueologia não integra o Sistema Confea/Crea. Existe algum estudo ou movimento para que isso venha a ocorrer?
Caiubi Kuhn - Durante muito tempo no Brasil não existiam cursos de Arqueologia e nem tampouco a profissão era normatizada por uma lei específica. Durante essa época, alguns geólogos ou até outros profissionais do Sistema atuaram também como arqueólogos e hoje são reconhecidos como arqueólogos. É lógico que com a aprovação da Lei que criou a profissão da Arqueologia, ela passa a ter um desenvolvimento profissional separado das profissões do Sistema, então esses profissionais que na época migraram e também desenvolveram atividades no campo da Arqueologia passaram, na verdade, a ter um reconhecimento profissional tanto da profissão de origem, como da profissão de arqueólogo, a partir do atendimento ao que prevê a legislação.
Confea - Qual seria a importância da Niède Guidon nesse conjunto de atividades?
Caiubi Kuhn - A Niède Guidon teve um papel muito importante pro país, não só na Arqueologia, mas também para as unidades de conservação, já que foi criado um parque nacional na Serra da Capivara pra proteger esses sítios arqueológicos, mas que também acaba protegendo formações geológicas, que estão relacionadas à diversidade do nosso planeta, geomorfológicas também, e também a biodiversidade que está presente na região. A atuação da Niède Guidon teve um papel fundamental na ciência brasileira. Em específico, em reconhecer ali o registro da presença humana naquela região, em datações que chegam a alcançar 50 mil anos, o que colocou em xeque a teoria da imigração do homem pelo Estreito de Behring nas idades que eram propostas anteriormente, que era por volta de 18 a 19 mil anos, e que teriam chegado no Brasil há 12 mil anos atrás. Hoje a gente sabe que o homem já chegou de fato aqui muito antes do que essa idade que se previa anteriormente. Além dos achados arqueológicos da Serra da Capivara, em Mato Grosso, por exemplo, no sítio arqueológico e paleontológico Santa Elina, existe o registro do homem há 27 mil anos, presente no centro da América do Sul, convivendo com animais como as preguiças gigantes.
Henrique Nunes / Equipe de Comunicação do Confea
Com informações do G1 e da Conselho em Revista (Crea-RS, edição nº 72)